Dia Mundial de Luta Contra a Aids: precisamos falar sobre as mulheres positivas
Cecília sabe bem o que é preconceito. Descobriu ser portadora de HIV há pouco mais de três anos e, como tinha um relacionamento estável, se considerava imune à doença. A descoberta da sorologia foi muito difícil no começo, como ela mesma diz, descobrir que tinha aids foi como um sentença de morte. Achava que iria morrer rapidamente.
Sobre Aids, machismo e preconceito
No final de 2013, quando finalmente havia conseguido o cargo de gerente do posto de gasolina em que trabalhou por anos, foi dispensada ao revelar que era HIV positiva. Como se não bastasse a grande decepção no campo profissional, o marido resolveu deixá-la. Boa parte da família não acreditou em sua versão da história, e alguns a acusavam de contrair o vírus de propósito para contaminar o esposo como vingança pelas traições que ela descobriu ter sofrido.
Seguir em frente
Mesmo com todos os absurdos e problemas que teve que enfrentar, Cecília não desistiu de viver. Hoje, ela encara o desafio diário de conviver com a doença e ser mulher. Toma remédios todos os dias, abriu uma pequena empresa e se dedica aos cuidados com a beleza.
Viver com Aids lhe trouxe muito mais responsabilidades e desafios e ela é ciente de que perdeu muito após o diagnóstico. Mas sabe que também ganhou, principalmente, força e coragem. Sabe que pode ajudar muitas mulheres na mesma condição, seguindo seu objetivo de dividir sua trajetória e participar de ONGS e projetos sobre o assunto, pois é uma pessoa alegre e otimista que contagia a todos a sua volta.
Esse é um desfecho feliz para uma história que tinha tudo para ser trágica e sim, há outros finais inspiradores para serem contados.
O outro lado
Infelizmente, o fato de contrair o vírus através dos maridos ou parceiros estáveis não é um caso isolado no nosso país. Os índices de mulheres casadas ou com parceiro fixo com HIV aumentam a cada ano. A Aids em pessoas do sexo feminino chegou a 40% do total de soropositivos registrados neste ano de 2016, e a maioria dos casos ocorrem em jovens de 20 a 39 anos.
Mulheres como as personagens de Positivas, documentário brasileiro de Susana Lira, confiavam em seus parceiros, decidiram não usar preservativo e contraíram o vírus. A narrativa é contada através de relatos verídicos de guerreiras como Cecília.
O filme mostra quão frágil e desinformado é o muro do preconceito. Ele, muitas vezes, cega a sociedade ao contar a história de sete mulheres soropositivas heterossexuais, até então “protegidas” pela instituição do casamento. Também aponta os principais fatores responsáveis pela feminização da Aids, como a vulnerabilidade social , já que a mulher sente muito mais pressão para transar sem proteção do que o homem. A vulnerabilidade biológica da mulher, devido a sua superfície de contato (tecido vaginal), é muito maior que a do homem. Em uma relação sexual, a mulher tem um contato estendido com os fluidos seminais, o que leva à maior probabilidade de infecção.
Exemplos de coragem e perseverança
Interessada em mostrar heroínas de carne e osso, a cineasta carioca, que também dirigiu obras tocantes como “Não saia hoje”, “Por que temos esperança?”, “Damas do Samba”, entre outros, foca sua lente em brasileiras que, aos olhos de muita gente, tinham tudo para dar errado, mas se tornaram exemplos de dignidade e perseverança.
Durante entrevista à revista Cláudia, Susana declarou: “não me interessa mostrar o sofrimento por mostrar, expor as pessoas. Elas têm uma solução, servem de janela para o público ver o mundo de outra forma.”
Vencedor do prêmio “Melhor Longa Metragem Documentário” pelo voto popular no Festival de Cinema do Rio 2010, o documentário atua como uma alternativa para as soropositivas de encontrar um novo caminho, seguir em frente e se reinventar. No caso das que ainda não conhecem esse universo, elas poderão passar a conhecê-lo e ajudar a combater o preconceito.
Trata-se de um filme-provocação que tem como principal alvo o estigma em torno da Aids e que também revela a hipocrisia presente em alguns matrimônios e relações estáveis. Ao assistí-lo, percebemos que isso pode acontecer com qualquer pessoa, até mesmo com a gente. Ao mesmo tempo, nos alerta para a importância de se prevenir, mostrando que não há sentido na discriminação.
Divulgação necessária
Infelizmente, a divulgação de meios que incentivem a prevenção vem se tornando cada vez mais necessária. De acordo com o Ministério da Saúde, a infecção por HIV entre as mulheres constitui uma das faces mais preocupantes da epidemia desde o fim dos anos 80, quando foram registrados os primeiros casos femininos.
Do total de casos notificados entre mulheres no Brasil em 2012, 86,8% decorreram de relações heterossexuais com pessoas infectadas com o HIV. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 17,5 milhões de mulheres em todo o mundo foram infectadas até o final de 2005.
Considerando os dados acumulados de 1980 a junho de 2013, no Brasil foram notificados 686.478 casos de aids, dos quais 241.223 (35,1%), do sexo feminino.
Adolescentes precisam de mais informação
As adolescentes preocupam, pois há casos de meninas que contraem o vírus em sua primeira relação por acreditarem que não usar camisinha é um ato de amor e por seus parceiros reclamarem de certo incômodo. Por essas e outras, é de grande importância que uma mulher dê luz a esse tema, já tão delicado, por meio de uma arte que tem o poder de alcançar tantas pessoas como o cinema. A diretora Susanna Lira assina projetos com temáticas fortes mas com muita leveza e sensibilidade:
“Eu faço filme com assuntos muito difíceis, entro em situações muito dramáticas, que para muitos, talvez não fosse adequado para uma mulher, por exemplo. Então eu só consegui fazer porque eu inventei um modo de fazer”, afirmou durante entrevista ao Canal Brasil.
O percentual de mulheres nas produções audiovisuais brasileiras é de 40%, apesar desse número ter crescido nos últimos anos, a participação feminina na cinematografia ainda é muito desproporcional à dos homens.
Susanna, que também dirigiu o longa “Soropositivo” e a série “ Mulheres em luta”, faz coro às mulheres que lutam pelo seu espaço no cinema nacional e com maestria. Deixou o jornalismo para se dedicar à sétima arte e escolheu lançar seu olhar às mulheres, principalmente aquelas que não tem uma vida extraordinária aos olhos da mídia. Se recusa a tratar suas musas como vítimas e seu grande objetivo é evitar dramalhões, mostrando personagens de histórias tristes e difíceis, mas que têm uma qualidade em comum: a força de superação.
Dia Mundial de Luta Contra a Aids
No dia 1º de Dezembro celebramos mais um Dia Mundial de Luta Contra a Aids e este é um dia para comemorar vitórias, homenagear aqueles que morreram por complicações relacionadas ao vírus, reforçar a mobilização da sociedade e refletir sobre os desafios atuais. Talvez o maior deles ainda seja a conscientização sobre o uso do preservativo durante as relações sexuais.
Grande parte da população não tem total acesso à informações preciosas e muitos são os casos em que a vergonha e o medo impedem o paciente de procurar ajuda. É preciso alertar sobre a importância do diagnóstico e desmistificar o preconceito absurdo de que HIV é para homossexuais ou profissionais do sexo. As campanhas de conscientização só acontecem perto da data de combate a doença e na época de carnaval, sendo que a importância de se preservar a vida não se restringe à dias ou horas. Todo dia é dia de preservar a vida.
É importante frisar que ter HIV não é mesmo que ter Aids, há muitos soropositivos que vivem anos sem apresentar sintomas e sem desenvolver a doença mas, que podem, sim, transmitir o vírus a outros pelas relações sexuais desprotegidas, pelo compartilhamento de seringas contaminadas ou de mãe para filho durante a gravidez e amamentação. Por isso, é sempre importante se proteger em todas as situações.
Profilaxia Pós Exposição
Para as pessoas que foram expostas ao vírus em alguma situação, seja de relação sexual sem proteção, violência sexual, acidente ou uso de seringas ou objetos cortantes contaminados, há a Profilaxia Pós Exposição (PEP), um tratamento de 28 dias para evitar a sobrevivência e a multiplicação do vírus no organismo. A PEP não substitui a camisinha, que é ainda o melhor meio de se proteger do HIV, e deve ser iniciada logo após a exposição de risco, em até 72h. Quanto antes o tratamento começar, maiores são as chances dos medicamentos funcionarem.
Positivas
Positivas é um documentário lançado em 2009, mas que continua muito atual e que permanece eficaz na provocação de uma debate necessário com o outro e com a nossa própria consciência.
Apesar do luto inicial e do prejulgamento que vêm em seguida ao diagnóstico, as mulheres do filme nos mostram que viver com o HIV não é o fim e que pode significar uma nova chance à vida e à sexualidade. Umas delas, Heli Cordeiro, lançou o livro “Preciso brincar nessa dor” com aos poemas que escreveu sobre sua experiência. No filme, ela cita um deles: “Preciso brincar nesta dor, esquecer o que magoa e reescrever a minha história. Se cada pássaro cria seu próprio balé, por que não eu?”.
Todas elas tiveram que reavaliar suas vidas, mudar as atitudes, recriar a caminhada e, o mais importante: ao assumirem a doença, descobriram que poderiam ajudar outras mulheres que compartilham das mesmas dores.
Cabe a nós a colaboração para que a mensagem de Susanna e suas personagens ganhe cada vez mais força, seja divulgando o documentário, seja nos informando ainda mais sobre o assunto e passando o conhecimento adiante.
Pois como disse Herbert de Souza, O Betinho: “A aids não é mortal. Mortal somos todos nós.” É preciso lutar pela vida que é tão frágil, delicada e breve como um sopro. É preciso ter uma postura positiva em relação ao que vivemos e ao que ainda virá.
Informações sobre o filme: Positivas (2009)
Imagem: Pinterest