Leia clássicos – Parte 2: Dom Casmurro e as histórias que contamos para nós mesmos
Chegamos na Parte 2 da série. Se você ainda não leu a Parte 1, volta lá e confere antes de seguir aqui. Não que seja obrigatório, mas você vai gostar. Juro.
Impossível falar de clássicos sem mencionar Machado de Assis, não é mesmo? Mais impossível ainda não lembrar de Dom Casmurro. A famosa história dos “olhos de ressaca” e do enigma “Capitu traiu ou não traiu?”.
Como uma boa curiosa, quando li o resumo da história fiquei com muita vontade de ler o livro. Tentei na época, mas não me interessei tanto. O que me fez querer ler mesmo foi a minissérie adaptada que passou na Globo em 2008 e fez todo mundo ficar viciado na música Elephant Gun, da banda Beirut.
Ainda no início deste ano eu reli Dom Casmurro só para lembrar se a sensação que tive na primeira leitura continuava a mesma. E continua. Essa história de traição nunca me convenceu. Na verdade, o que eu sempre pensei enquanto lia era: meu deus, mas que história maluca o Bentinho está alimentando na cabeça dele!
A minha impressão durante todo o livro é de que o Bentinho idealizou a Capitu e qualquer atitude dela que fugisse dessa personagem criada, virava uma grande crise para ele. Até que chega um momento na história em que a Capitu já não correspondia mais a vários dos ideais esperados e então Bentinho encontra uma grande verdade para justificar tudo: Capitu está me traindo.
Tendo essa premissa como genuína, o que Bentinho faz a partir daí é procurar minúcias e evidências para confirmar seu pressuposto absoluto de traição – na minha análise, fruto de uma enorme insegurança sobre ele mesmo. Mas não vamos aprofundar nisso.
O que aconteceu com o Bentinho é algo que o nosso cérebro possui uma facilidade gigantesca para fazer que é simplificar coisas e contar histórias que façam sentido de acordo com a nossa trajetória. Só que muitas vezes essas narrativas que contamos para nós mesmos não são reais e podem nos levar a cometer grandes equívocos.
DEIXA EU TE CONTAR UMA COISA: A SUA MENTE MENTE
Sabe quando a sua amiga está ficando com alguém e você sabe que o cara não a trata da forma que deveria, além de ser um completo idiota, mas qualquer mero sinal de afeto ela já usa como argumento para dizer como ele é maravilhoso? Ou então quando você quer muito comprar uma roupa cara, mesmo sabendo que não é a melhor decisão, mas é só receber aqueles R$ 10 reais de uma amiga que te devia que já tem certeza de que é um sinal para comprar a roupa?
Pois então. Isso é o seu cérebro facilitando as coisas e mentindo para você.
No livro Rápido e Devagar, escrito pelo psicólogo Daniel Kahneman que ganhou prêmio Nobel de economia após seu estudo sobre tomada de decisões, ele explica como o nosso cérebro é programado para tornar perguntas difíceis em perguntas fáceis, além de transformar eventos aleatórios e golpes de sorte em histórias coerentes e de fácil compreensão.
Ele explica que é como se a mente humana não soubesse lidar com a falta de coerência e sempre buscasse juntar as pecinhas de um quebra cabeça que nem quebra cabeça é. Muitas vezes são só fragmentos aleatoriamente jogados na mesa mesmo.

Claro que essa atividade da mente humana possui impactos positivos e negativos, como tudo na vida. O fato de o nosso cérebro buscar coerência constantemente fez com que, por exemplo, Isaac Newton buscasse entender o porquê a maçã cai para baixo e não para cima. O que surgiu daí nós já sabemos.
Outro exemplo positivo da busca por coerência mental e histórias criadas pela mente é o do Michael Jordan, ex-jogador de basquete. Ele conta naquela série maravilhosa da Netflix – The Last Dance – que em um jogo menos importante, para se manter motivado e competitivo, ele criou uma história – e fielmente acreditou nela – sobre como um jogador do time adversário teria olhado para ele de forma debochada e desafiadora, o que fez com que ele quisesse provar para o jogador que ele era o melhor em quadra. Dessa forma, ele conseguiu manter seu rendimento e motivação, apesar de não ser um jogo relevante.
Essa habilidade cerebral de criar histórias coerentes e de compreensão simplificada é capaz de gerar resultados incríveis. Mas também, muitas vezes, caímos em ciladas e acabamos imersos em narrativas irreais e que nos causam muito mais malefícios do que o contrário.
NÃO IMPORTA SE CAPITU TRAIU DOM CASMURRO OU NÃO. O QUE IMPORTA É COMPROVAR MINHA HISTÓRIA
Voltando para Dom Casmurro, o que Bentinho faz durante todos os capítulos de desconfiança da suposta traição de Capitu é buscar evidências que comprovem sua tese máxima: fui traído. Em alguns momentos chega a ser angustiante o fato de ele não questionar um terceiro para saber se essa suposição é verdadeira. Ou sequer dar oportunidade para Capitu explicar as hipotéticas evidências de traição.
A sensação é de que Bentinho não quer de fato saber se foi traído, ele só quer comprovar sua própria teoria. Ao invés de lidar com a história mais difícil – suas inseguranças, falta de autoestima e possível desinteresse de Capitu – ele prefere criar uma história mais simples e busca elementos para dar coerência à história inventada.
Isso acontece em vários momentos na vida. Criamos grandes vilões e mocinhos em histórias que induzem uma ilusão de compreensão da verdade, pois nosso cérebro fica completamente agoniado em situações de incoerência.
Pensa em questões de grande divisão social como o aborto. Sem adentrar no mérito sobre o meu posicionamento a respeito do tema, o que acontece muitas vezes é que as pessoas fazem suposições simplistas e imediatas para tentar dar coerência a um assunto que envolve grande multiplicidade. Se você é a favor, é um vilão que deseja a morte de uma criança. Se você é contra, é um vilão que negligencia a vida da mulher.
No entanto, o debate é muito mais profundo do que isso e envolve dilemas morais de alta complexidade, como: quando é considerado o surgimento da vida? Qual vida prevalece sobre a outra (mãe ou bebê)? Até onde o Estado pode interferir na vida privada? Qual o alcance da vontade de escolha? Dentre vários outros questionamentos. As pessoas transformam essas perguntas difíceis em apenas uma pergunta fácil: você escolhe o time da mãe ou do bebê?
Veja que ao simplificar e tentar criar uma história coerente para um assunto complexo, você acaba desprezando todas as nuances que a questão envolve e fica cego por enxergar só uma parede estando dentro de um labirinto. Ao assim fazer, a chance de acabar tomando decisões equivocadas aumentam significativamente.
As pessoas possuem dificuldade de lidar com a realidade diversa e incoerente da vida. Como diz Daniel Kahneman “Nossa reconfortante convicção de que o mundo faz sentido repousa em um alicerce seguro: nossa capacidade quase ilimitada de ignorar nossa própria ignorância”.
SAIBA COMO SUA MENTE FUNCIONA E EVITE CAIR EM CILADAS
Agora que você já sabe da capacidade da nossa mente de criar narrativas, o que nos resta é conseguir diferenciar quando estamos criando histórias simplistas e que nos prejudicam, de quando é algo saudável e alinhado com a realidade.
Acredito que um jeito eficaz e mais seguro de evitar cair em ciladas é: saia da sua própria mente.
Converse com quem se importa com você. Seja seus amigos, familiares ou colegas de trabalho. Pergunte a eles se a sua narrativa faz sentido e racionalize se corresponde aos fatos. Escute o ponto de vista do outro e se questione se não está deixando escapar informações relevantes. Faça o exercício de se tornar um espectador da própria história para vê-la de fora. Lembre-se que o mundo é muito mais complexo do que aparenta e que a verdade é como o mar, mutável e sem dono.
Não seja igual ao Bentinho e deixe que a sua narrativa lhe consuma. Aposto que se o Bentinho tivesse perguntado a um amigo sobre a traição, ou teria enxergado de uma vez que estava viajando, ou teria terminado logo o relacionamento em que já não existia confiança.
Além de conversar com as pessoas que se importam com você, outra dica é: faça terapia. Em muitos casos estamos tão imersos nas narrativas que contamos a nós mesmos – “não sou capaz de desenvolver tal projeto”, “todos me traem”, “não sou digno de amor” – que somente com ajuda de profissionais conseguimos recontar a nossa própria história de uma forma mais saudável. Por isso se conhecer é tão importante.
Precisamos sair da nossa própria mente e escutar o que vem de fora. É essencial saber que o nosso cérebro nem sempre tem razão e muitas vezes está olhando a vida sob uma perspectiva duvidosa. Se permita olhar fora do seu binóculo para conferir se os olhos são mesmo de ressaca, ou são apenas olhos comuns, vistos por uma lente alterada.