A história de Lily Braun e as violências silenciosas dos relacionamentos abusivos

Escrita por Chico Buarque e Edu Lobo e interpretada por nomes como Gal Costa, Zizi Possi e Maria Gadu, cantamos a história de Lily Braun como se uma feliz história de amor fosse.
O ritmo e a melodia nos inebriam, e nos deixam desatentas aos detalhes que demonstram que na verdade está se contando a história de uma mulher que está perdendo a sua identidade e alegria. E, em relacionamentos reais, quantas de nós já não passamos por isso?
É fácil perceber que estamos em um relacionamento abusivo quanto nele se tem agressão, xingamentos e gritaria. Mas não é tão simples quando essas violências são silenciosas. Quando pouco a pouco você se vê perdendo sua essência, suas vontades, suas preferências. Quando sua alegria vai se dissipando e você não sabe dizer o porquê.
Esse texto é, sobretudo, pra que a gente consiga enxergar alguns padrões tão comuns, mas tão difíceis de serem vistos. Tão difíceis de serem nomeados como abuso.
Então, vamos à letra da música Lily Braun
Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
O príncipe no cavalo branco, o cara ideal, o homem dos meus sonhos. Quantas vezes nos contaram essas histórias? E, de tanto nos contarem, acabamos acreditando. Mas não existe homem dos sonhos, a gente tá falando de vida real e precisamos sempre estar acordadas para que o conto de fadas não vire pesadelo.
Na sequência da letra, a denúncia: “era mais um”. Não era o homem dos sonhos, era só mais um, e ela já sabia. A gente sempre sabe. Nossa intuição tá sempre ali sussurrando pra que a gente caia fora. Mas fomos ensinadas que intuição é paranóia, então a gente cala essa vozinha e paga pra ver. E acabamos por calar todas as nossas vozes, falas e opiniões.
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom
Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Os olhos que chupam, que comem, que sugam a imagem. E o que resta de uma mulher reduzida apenas ao próprio corpo?
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz
Essa mulher foi devorada. De close em close, perdendo a pose. De farsa em farsa, perdendo a graça. De mentira em mentira, perdendo o poder. De traição em traição, perdendo o amor próprio.

De tanto nos dizerem que é sempre assim, que não há saída, que é isso que somos, aceitamos. E por que ir embora em busca de algo novo, se sempre nos disseram que são todos iguais? Se vamos sofrer de qualquer forma, preferimos ficar. E até sorrir, se for o caso. Afinal, já não existe força. A sensação é de exaustão.
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou
O ciclo é esse. Quando estamos percebendo que algo está errado, eles voltam. Com drinques, elogios, presentes, carinhos e pedidos de desculpas. E nossa visão vai mesmo ficando flou. Será que eu estava certa? Talvez ele não seja tão ruim assim, talvez isso não aconteça mais, talvez eu tenha exagerado, é o que pensamos.
Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues
Os exageros, na verdade, não são nossos, são deles. Buquês, rosas e poemas. Eles precisam nos convencer que nos amam excessivamente. E eles vão te convencer que amam tanto, que dói.
E a gente esquece que amor não é pra doer. Eles querem convencer que estão jogados aos nossos pés. Mas quem está se desmilinguindo até o chão? Nós. E é aí que mora o perigo.
Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
Abusou do scotch e disse que meu corpo era só dele aquela noite. Isso é declaração de amor ou declaração de posse? É carinho ou violência? Você sabe diferenciar os abraços que te acolhem e os abraços que te sufocam? Suas faces estão rubras de tesão ou de vergonha, você ainda sabe dizer?

E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê
Ele voltou com as mesmas narrativas, os mesmos presentes. O discurso de desculpas normalmente é o mesmo, e é importante perceber. Eu espero que você perceba. E agora Lily Braun não quer mais ficar. Lily Braun quer ir embora. E eu espero que você vá.
Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
E no fundo é aqui que eles sempre chegam. Amar como esposa, e não como star. Pouco a pouco, eles te tiram do lugar de potência. Você deixa de ser vista como uma profissional de sucesso, pra ser vista como dona de casa. Eles não estão te violentando fisicamente, mas você se sente apagada. Você ainda pode ir e vir, mas você não vai.
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz
E se você não vai, seu casamento ou qualquer relacionamento pode te aprisionar sem grades. Nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais feliz. Se você já não sabe mais quem é como mulher, se suas forças foram lentamente e silenciosamente retiradas de você, não há como ser feliz.
Casamento não é atestado de felicidade. Mas as renúncias que você faz a quem você é são atestados da falta dela. Estejamos atentas. Eu espero que seu altar não se torne o seu cárcere.

Imagem: Unsplash