Todas as mulheres da minha família morreram do coração
Todas as mulheres da minha família morreram do coração. Lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração. Morrer do coração é minha herança. Todas elas tentaram me preparar para essa dor: não faz isso, não faz aquilo. Mas o fruto proibido é meu doce preferido. É nosso fardo. Meu fardo.
Sobre morrer do coração por traição
Maria, minha avó paterna, morreu do coração várias vezes por causa do mesmo cara, meu avô Sebastião. A primeira morte, conhecida, foi no dia da traição, no dia que ela descobriu que ele tinha outra família. Maria, com 8 filhos para criar, perdeu 1 anos antes. Deve ter pensado como ele ainda tinha condições de ter outra família. Ou talvez ela só tenha pensando: como ele pôde fazer isso com ela? Como? Mas pôde.
Ela só descobriu a traição pois a outra esposa tinha falecido. A partir daquele momento, ele tinha uma filha sem mãe para criar. Ele não criou os 9 filhos, não saberia cuidar dessa. Maria adotou a moça como se fosse dela. Tia Fernanda herdou a maldição da família naquele dia também, descobriu que não era filha única. Morreu do coração com 11 anos.
Décadas se passaram, filhos criados, netos criados. Sebastião veio com a cartada final para o coração da minha avó: morreu. Lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração. Maria reviveu a dor de morrer do coração de novo. E mesmo depois de tudo, ela ainda tinha o mesmo pensamento: como ele pôde fazer isso com ela?
Hoje, Maria não lembra de mais nada. Está com início de demência e acha que tem 16 anos.
Pergunta para os filhos cadê a mãe deles e, quando eles respondem que é ela, ela gargalha. Impossível uma mulher de 16 anos ter filhos tão velhos. Maria morreu de coração 2 vezes na vida (pelo menos, foi o que ela me contou). Mas, no fim da vida, arranjou um coração intocado. Jovem.
Sobre morrer do coração por ser mulher
Sônia, minha avó materna, morreu incontáveis vezes do coração. O primeiro homem a lhe dar um coração partido foi o pai. Levantava a mão várias vezes por dia e nunca ensinou como é, de fato, receber o amor de um homem. Fugiu de casa com lágrimas nos olhos, sem se despedir de ninguém e com o coração apertado. Tenho certeza que isso matou a minha bisavó do coração também.
Minha avó arranjou um emprego de doméstica aos 15 anos. Teve seu corpo violado. Ela nunca falou muito sobre isso, mas na vez que falou, me fez ter a certeza que foi mais que uma morte do coração. Foi uma morte completa. Dessa atrocidade, nasceu uma criança, minha Tia Mônica. Alguns anos depois, ela foi arrancada dos braços da minha avó. Mais uma morte.
Tempos depois, Sônia conhece Gilberto, meu avô.
Casa com ele e tem 3 filhos. Poderia acabar aí, mas Gilberto batia demais na Sônia que, por sua vez, aprendeu a bater de volta. Gilberto traía demais a Sônia, que não traía de volta. Lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração. Muito tempo depois, tempo demais, ela se livrou dele. Passou fome com os filhos e, de vez em quando, ainda chorava a ausência dele.
Sônia reviu a filha perdida, que esperava que ela fosse rica ou que soubesse o nome do estuprador, para saber se pelo menos ele era rico. Lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração. Sônia casou o filho mais novo, o preferido, minha mãe que lute. Aqui, foram lágrimas de felicidade e nada de morrer do coração.
Minha avó materna, Sônia Maria Pereira, viveu muito.
Não em extensão de tempo, pois ela não viveu o bastante. Teve tempo de balancear as mortes do coração e fez ele bater mais rápido por inúmeros bons motivos. Curiosamente, morreu de fato do coração no fim da vida. Lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração.
Sobre morrer do coração por “herança”
Gildete, minha mãe, morreu do coração bem nova, com a ajuda do meu avô Gilberto. Ver aquele homem bater na mãe dele foi a primeira morte que ela vivenciou. Morreu do coração alguns anos depois, após se casar com o meu pai, Clóvis. Ele não era o príncipe encantado que ela estava esperando. Lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração.
Ela me teve e diz que isso foi bom. Me faz sentir isso também. Com o tempo, teve que deixar de ser quem ela queria ser como mulher, pois tinha que ser mãe. Era como ser mãe solteira, mesmo tendo um marido. Isso a destroçou, e até hoje ela não se recuperou. Perdeu a mãe faz 10 anos, mas parece que foi ontem. Também sinto isso. Por muito tempo, aqui em casa só tinha lágrimas nos olhos, sem fala e um aperto danado no coração. Mortes diárias no coração.
E tem eu, Sabrina, que nasci com o coração partido.
De certa forma, eu sinto que carrego todas as mortes do coração dessas mulheres. Incríveis mulheres que me criaram. Estou tentando quebrar o ciclo do coração partido. Eu quero um dia poder me encontrar com elas e dizer que nada foi em vão. Afinal, elas me ensinaram que o coração não é órgão tão frágil assim e nossa linhagem é forte. Minha querida, seu coração aguenta mais do que você pode imaginar.
Dedico esse texto a todas as mulheres da vida que, antes de morrerem fisicamente, morreram do coração.
Imagem de capa: via @saraandreasson