O que fazer quando tentam nos silenciar?
Lembro-me como se fosse ontem, do livro da formatura da oitava série, no qual o professor de educação física seria o responsável por deixar alguma mensagem de despedida aos alunos.
Eu estava tão na expectativa de ler o que ele havia escrito sobre mim e não via a hora de ser aceita por aquela figura tosca, mas que era uma autoridade e que tinha, naquele momento, o poder de me fazer pertencer.
Afinal, as mensagens dele para meus colegas (principalmente os meninos bons de bola e as meninas estilo Sandy depois da canonização) haviam sido super motivacionais e elogiosas.
Logo, a minha não seria diferente, pensei.

Foi distribuído um livro para cada aluno e no fim das contas, a mensagem dele para mim foi algo como “a Letícia é legal, apesar de ter um pensamento muito crítico”.
“Pera, isso foi um elogio?”. Definitivamente não, já que a tal da crítica que eu havia feito era sobre as meninas fazerem aula separadas dos meninos, e também por terem o tempo de aula de educação física reduzido, a fim de que aprendessem sobre decoração na aula de Educação Artística.
A justificativa dele para a segregação foi “porque quando chega nessa idade, os meninos não conseguem controlar muito bem os hormônios, com as meninas se exercitando com roupa de ginástica”.
Talvez, ele tenha escrito aquela mensagem no livro, pelo fato de eu ter perguntado: “professor, mas por que só os meninos jogam futebol?”. Realmente, deve ser cansativo ter que explicar para uma adolescente o porquê de ele ser um escroto.
Lembro-me como se fosse ontem, o quanto a Letícia de 14 anos ficou indignada, mas ao mesmo tempo, a criança em mim chorou por dentro, por não ter conseguido cumprir a promessa que havia feito para aquela menina de 7 anos, de que nunca mais daria a sua opinião, pois assim, ela poderia ser tão agradável quanto a Aline e, talvez o Nicolas, que sentava na carteira ao lado, passasse a gostar dela.

Meu ex uma vez disse algo do tipo: “vamos almoçar com a minha família, mas piadas que te deixam desconfortável vão surgir. Por favor, tente não criar caso”.
Essas situações que aconteceram comigo e que acontecem com muitas mulheres que decidem falar, não tem a ver com padrão de repetição, como diz algum psicanalista famoso que não lembro o nome, e sim, com um retrato fiel de como somos silenciadas.
Hoje em dia não cumpro a promessa que me fiz aos 7 anos.
Agora aceitei que essa sou eu, e que tudo bem se o preço que eu pague for o fato de que o Nicolas, ou o professor, ou sei lá quem não me ature.
Na verdade, tudo bem não, porque é sofrido pra caramba e vai muita energia nisso, mas a gente tem voz é pra falar mesmo. Se eu preciso agir diferente da minha essência para não desapontar alguém, então estou sendo desonesta comigo, e se eu não for honesta comigo, qual o motivo da minha existência?
Esses dias estava conversando com um cara X, que nem lembro o nome, para ser sincera, e ele veio me perguntar se já sofri algum tipo de machismo estrutural.
“Já sim, por que?”, “ah, porque entendo do meu privilégio e gostaria de ouvir de uma pessoa que não possui os mesmos privilégios (no caso uma mulher) sobre como é passar por isso.”
Fiquei admirada de um homem me pedir para discorrer sobre isso, assim, do nada.

Mesmo com o apito da intuição soprando aos meus ouvidos e dizendo que esse era só mais um papo furado de mais um cara furada, pensei “ah, já tô aqui mesmo”, e escrevi um texto gigante, explicando com toda a paciência que eu não tenho o quão complicado é, para uma mulher ir a uma entrevista de emprego na minha área, por exemplo.
Tem que pensar na roupa que vai te deixar menos feminina possível, para que antes da mulher, enxerguem a profissional, além de avaliar se vai falar que tem filho, se é casada e todos esses absurdos que podem privar a mulher de conseguir uma vaga.
Após esta aula que eu não tinha obrigação de ter dado, ele só teve a capacidade de soltar: “ah, mas homem também não tem que ir com roupa formal para entrevista?”.
Nesse caso, houve a possibilidade de fala, mas na verdade a intenção dele era rebater o que eu dizia e não me ouvir, de fato.
Aonde foi parar o papo de “entender o ponto de vista do outro e ser consciente do lugar privilegiado que ocupa”?
Na hora só consegui pensar “por que raios não ouvi minha intuição e perdi tempo explicando isso para um cara X, que nem lembro o nome, que só queria o prazer sádico de rebater o “mimimi” de mais uma mulher com quem ele conversava”?
Esses foram apenas alguns exemplos, voltados para o meu umbigo, de quantas vezes fui silenciada ou ridicularizada quando me expressei.
Mas esse texto não é apenas sobre mim, é também sobre todas as mulheres, que passam por isso diariamente e algumas vezes, morrem por terem voz.
Todas são afetadas: desde a super tímida, que lava o banheiro da casa do namorado aos finais de semana, por ter medo de desagradar, mas que por dentro sabe que está sendo feito de empregada, até aquela que precisa pensar em mil maneiras de como abordar algum assunto, sem ser taxada como grosseira, maluca, exagerada, sensível demais ou “tá na TPM, melhor nem considerar”.
Quando fui babá nos Estados Unidos, cuidei de duas irmãs, com idades muito próximas, e os pais eram podres de ricos. Nesse tempo, tive a confirmação de como o silenciamento da mulher acontece, em qualquer país ou classe social, muitas vezes de forma inconsciente.
Vamos chamá-la de Florzinha. Ela era o protótipo da criança angelical, que fala de forma meiga, que diz sim para tudo e que é “easy to please”, como os próprios pais a definiam.
Chamemos a outra de Docinho. No auge dos seus 5 anos, já confrontava as atitudes machistas do pai e questionava as ordens, de uma forma educada, porém curiosa, buscando uma resposta lógica.
A Florzinha recebia muito mais palavras positivas e de incentivo dos pais, enquanto a Docinho acabava ocupando, dentro do núcleo familiar, o papel de megera em miniatura, “gênio difícil”.
Marielle Franco, Mari Ferrer, Bianca, a tia que depende financeiramente do marido e que sofre abuso todos os dias, mas que não consegue se separar, e outras milhares, as quais são silenciadas, violentadas e mortas enquanto escrevo esse texto, são exemplos de mulheres que têm e que tiveram suas vozes caladas, das piores formas possíveis.
A sementinha do silenciamento é plantada em pequenos espaços do cotidiano, mas pode gerar árvores com frutos podres, venenosos e com cheiro de sangue, com as raízes fincadas e resistentes, que ocupam muito espaço, durante muito tempo.
Fui convidada para dar uma palestra sobre carreira para os alunos daquela escola, em que o professor de Educação Física ainda leciona. Não pude ir, porque estava viajando, mas ano que vem estarei lá, e minha maior satisfação vai ser passar o microfone para qualquer uma que queira falar, e dizer “além de legal, você tem o pensamento muito crítico”.