Te conheci em um dia de merda, mas até aí tudo bem
Um dia de merda. A gente se conheceu em um dia de merda. Acordei atrasada, não tomei café, mas eu nunca tomo. Coloquei a blusa do avesso. Dormi no ônibus e passei do ponto. Metrô lotado e gente fedendo, mas até aí tudo bem.
Dia infernal no trabalho. Chefe berrando, relatório mal feito. Almoço de dois minutos. Reunião das 15h que era para ter terminado às 16h, mas terminou às 17h. Até aí tudo bem.
É sexta-feira, muda essa cara, pensei.
Convites de uma noite melhor gritam no celular. Desisto de desistir e topo uma balada. Afinal, eu disse que eu diria sim para tudo depois que a quarentena acabasse. Corro para o shopping e compro um vestido. Visto por lá mesmo. Compro um creme caro e passo no cabelo. Deveria ter lavado ontem, penso.
Gente, falo para os meus amigos, vamos sair? Encontrar um lugar para comer? Todo mundo concorda. Saímos e ficamos vagando pelas ruas do centro de São Paulo, buscando algum lugar que alimente nossa barriga e esperanças de um madrugada melhor que a noite.
Viramos uma esquina e encontramos uma rua lotada de bares. Cada bar tocando um ritmo musical diferente. Escolhemos o bar do forró, claro, bem do lado do bar do funk, por que, né? Prioridades, porém todo mundo tem necessidades, mas até aí tudo bem.
Sentamos na mesa do lado de fora. Pedimos batata frita, coxinhas, asas de frango e muito álcool. Quando a comida chega a chuva também chega junto. Olhamos para o céu e depois para os braços. 1 pingo, 2 pingos, 3 pingos, 18 pingos, 153 pingos. Um dos meus amigos diz “tá chovendo?”.
Parece ser óbvio, mas precisa ser dito.
Olhamos para dentro e vimos que o bar já estava lotado, todos os bares. Não tinha lona para proteção. O garçom estava vindo na nossa direção, pronto para levar os pratos para dentro e nos fazer comer em pé. Se o senhor não se importa, falei, vamos comer aqui mesmo. Tem certeza? Sim. Meus amigos saíram do transe, já encharcados, e se juntam a minha loucura.
Cruzo as pernas e pego a primeira batata ensopada. Logo o segundo pega a coxinha e assim por diante. A chuva não aperta, mas se estende e faz com que as nossas roupas fiquem tão ensopadas quanto a comida. Decidimos pagar a conta e andar.
Um dos bares deixa a música tocando e a rua vira um grande baile funk. No inferno, né? Abraçamos o capeta e descemos até o chão. Logo a música termina e o forró começa. AH NÃO, EU QUERO DANÇAR FORRÓ! Grito imitando uma criança birrenta. Tu ri de longe. Sigo a risada e vejo você vindo na minha direção.
Eu danço com você, tu diz sorrindo.
A gente começa a dançar forró na chuva. Dois desconhecidos. Rindo um para o outro como se a gente já se conhecesse. Corpo colado. Tua mão na minha cintura. Minha mão nos seus ombros. Tudo tão simples e inofensivo, mas tão cheio de significados. A música acaba, a gente se apresenta.
Tu me diz que estava me acompanhando desde do bar. Achei demais vocês comendo na chuva, tu diz. Se eu soubesse que você estava tão interessado, na nossa refeição, teria te chamado para comer também. Tu ri com os olhos e diz que estava interessado sim.
A gente segue cantando e dançando na chuva. Agora os amigos dele também estão com os meus amigos e a gente vira um grande grupo de pessoas cantando e dançando na chuva. Eu digo que eu nunca comi na chuva e que foi bom. Achei o gosto da água em contato com a coxinha muito revigorante.
Sabe uma coisa que eu nunca fiz na chuva, ele diz, beijei alguém. Cara de decepção. E era o meu sonho desde criança. Você não está falando sério, eu digo. Quer dizer que quando você era criança seu sonho era beijar alguém na chuva quando crescesse? Sim, ele diz bem sério, era o meu sonho. Aliás, ainda é.
Eu vou te ajudar, vai saber quando vai chover de novo, né? A gente tem que aproveitar essa oportunidade. Claro, isso se você quiser conquistar esse sonho hoje. Ele sorri, ai que sorriso, colocar as mãos no meu rosto, afasta o meu cabelo. Eu acho que o meu sonho era você.
Enquanto a gente se beijava a chuva ia parando devagarinho. A música continuava alta. Os amigos rindo, gritando, beijando e dançando. E finalmente meu dia de merda fez sentido. A chuva passou e a rua ficou com aquele cheirinho delicioso que a chuva deixa no asfalto. A gente se despede, tu pega meu número, eu pego o seu, não sei se a gente vai se ligar, mas até aí tudo bem.
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